Em carta para Juan Francisco Piquet, datada de janeiro de 1904, José Enrique Rodó já reclamava do quanto a estupidez da guerra tornava o ambiente político e a vida cotidiana em seu país ainda mais difícil. O histórico de guerras e golpes que marcava a trajetória do continente americano desde as lutas de independência foi tema de diversos artigos publicados durante sua vida, o “sport nacional” como veio a chamar com sarcasmo. Ao mesmo tempo, procurou em diversos de seus textos estabelecer uma certa distinção entre conflitos que abrem a possibilidade de novos mundos e aqueles que são apenas explosões selvagens de fúria nacionalista. Em seu próprio país, as disputas partidárias violentas resultavam em constantes manifestações de cansaço e desânimo expressos em sua correspondência.
Contra as explosões violentas que surgiam de tempos em tempos em sua parte do mundo, Rodó defendia ideais de civilização e transcendência que ele acreditava poder identificar na cultura europeia, ou, pelo menos, parte dela. Utilizando uma visão muito pessoal das tradições do humanismo renascentista, do cristianismo e da cultura greco-romana antiga, Rodó via na civilização latina uma mistura de valores que apontavam para o cultivo desinteressado das artes e do conhecimento e um amplo ideal de harmonia social. A América Latina que ele tomava como seu ideal seria herdeira dessa história. A França, país da onde absorvia suas principais inspirações intelectuais, era o centro desses valores espirituais e estéticos. A Inglaterra, apesar das reticências que sentia a respeito da religião protestante, fornecia um ideal político liberal muito influente em seu pensamento.
Perturbadoras notícias do Velho Mundo
Não surpreende, então, que a eclosão da Grande Guerra de 1914 tenha sido um evento perturbador em sua trajetória. Logo nos primeiros meses do conflito, Rodó publica uma curta série de artigos jornalísticos nos quais procura acompanhar as perturbadoras notícias que chegam do Velho Mundo. Ele ressalta, já no início, que a forma de acompanhar os grandes conflitos internacionais mudou. Com o telégrafo, as notícias chegam rápido e são abundantes. O cronista se resguarda de decidir a veracidade da torrente de informações contraditórias, muitas delas relatando episódios de horror. Com tom de certa ironia, lembra que a guerra, para os habitantes da América distantes do cenário de conflito, se tornou tema de conversas saborosas nos cafés, acompanhadas pela degustação do moka. Em termos modernos, Rodó vê a guerra se transformar em espetáculo midiático.
Mas, para ele, seria inaceitável a impassibilidade diante de tamanha catástrofe. Adepto da crença de que a expansão da cultura europeia é um processo civilizador, minimiza as consequências do colonialismo e apresenta a expansão franco-britânica como uma disseminação pelo mundo dos ideais liberais. Por isso, vê na Grande Guerra um conflito de significado completamente diferente das guerras civis americanas ou de conflitos étnicos africanos, onde seria ainda possível manter uma postura mais ou menos imparcial. Na Europa, ao contrário, estaria em jogo o destino da própria liberdade. E, em sua opinião, a França e seus aliados são o lado que todo amante da civilização liberal deve defender sem hesitação. Os povos americanos teriam um legado racial e político herdado do mundo latino europeu que tornaria este posicionamento inescapável, mesmo que a neutralidade militar seja mantida. Herança que vem da Revolução Francesa de 1789, inspiradora das lutas americanas de emancipação.
Seu repúdio pela Alemanha é total embora não seja apoiado exclusivamente em bases raciais e nacionais. Rodó admira a “Alemanha liberal”, a Alemanha dos poetas e dos filósofos, de Kant e de Goethe. Menos forte e menos rica do que o Império de Guilherme II, ela teria mais espiritualidade e compartilharia os valores fundamentais do humanismo. A nova Alemanha, porém, seria guiada por um “César” expansionista e reacionário, perdido em delírios de restauração da Europa feudal e governando na crença da superioridade da força sobre a lei e o direito. Um tirano aparentemente nostálgico do direito divino e do absolutismo. Os perigos desse sonho expansionista teriam sido demonstrados pela cruel invasão da Bélgica, um atentado contra o direito de neutralidade das nações pequenas.
Intervenções norte-americanas
Rodó fez parte da geração de letrados latino-americanos do fim do século XIX assustados com o crescimento das intervenções norte-americanas nos assuntos locais. A participação dos Estados Unidos na luta de independência cubana em 1898 pode ter sido um dos acontecimentos que o motivaram a escrever seu clássico livro Ariel. O temor de que a civilização latina estivesse destinada a ser eclipsada pelo fortalecimento dos países do norte da Europa suscitou muitas reflexões sobre a necessidade de reformas profundas. Para Rodó, uma vitória alemã na Grande Guerra poderia fortalecer as correntes de opinião pública defensoras de relações internacionais geridas pela força das grandes potências. Nada garantiria que a América Latina não despertasse a cobiça do que ele chamava “aquele outro imperialismo, americano”, o qual poderia agir mais livremente, se usando da condição de protetor das Américas contra o expansionismo europeu.
Apesar de todos os seus esforços para valorizar os ideais da civilização europeia, a leitura de suas crônicas deixa clara a decepção causada pela eclosão da tragédia militar. Assombrado com as notícias de batalhas que mobilizavam milhões de soldados de cada lado, causando um aterrador número de fatalidades, Rodó deixa visível o tremor que atingiu sua fé na grandeza europeia. Já nas primeiras crônicas, descreve o abalo causado pela carnificina no orgulho do homem contemporâneo e na crença no progresso da espécie. Questiona se esta civilização, no auge da sua grandeza, não cairá como outras do passado para deixar espaço para uma ordem mais justa.
Depois de quase meio século de relativa paz no continente europeu, muitos poderiam ter acreditado que as fúrias do militarismo e do nacionalismo haviam se tornado ultrapassadas. Uma fantasia que o próprio Rodó pode ter compartilhado. Porém, diante do espetáculo de destruição descrito nas mensagens telegráficas, se pergunta se as guerras intestinas das Américas, afinal, também não são parte da herança europeia que formou os povos locais. E prevê uma literatura do pós-guerra não marcada pelo heroísmo e sim pela culpa, devastação e miséria.
Em seu último ano de vida, pôde realizar o tão sonhado e tantas vezes adiado projeto de conhecer a Europa, ainda em plena guerra, viagem interrompida por seu falecimento na Itália. Mas sua percepção já estava marcada, então, tanto pelo cultivo de seus ideais humanistas quanto pelo pessimismo diante do que viu.
*Dr. en Historia por la Universidad Federal de Río de Janeiro. Prof. en la Universidad Federal de Espíritu Santo, Vitoria, Brasil.
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